A pré-eliminatória entre Sporting e a Udinese não representa apenas a discussão por um lugar na Liga dos Campeões — ela é também um símbolo da ancestral luta entre duas concepções opostas da vida e do nosso papel no mundo.
Como país de emotivos que somos, temos uma certa tendência a antipatizar com a atitude pragmática e centrada nos resultados que muitas pessoas apresentam na vida. Normalmente, associamos o pragmatismo à falta de escrúpulos, ao cinismo, à ausência daquela meia-tinta com que assinamos a presença portuguesa no mundo. Isto tem-nos levado a derrotas estrondosas e, para lamber as feridas do amor-próprio, à invenção mais nacional de todas, a ‘vitória moral’. Feitas as contas — outra expressão com que nos damos mal — os factos e os números interessam menos do que «as sensações» que temos e «as leituras» que fazemos. O resto é fado ou fatalismo: os nossos insucessos não têm nada a ver com as nossas fraquezas, os nossos erros ou a nossa falta de preparação. São, isso sim, obra do destino. Coisas que estavam escritas e tinham de acontecer.
Isto vai tão longe que mesmo nas horas das vitórias, dos sucessos, dos acertos, esperamos que os vencedores, em vez de reclamarem os méritos da conquista, relativizem a sua prestação. Não gostamos de pessoas que se ponham «em bicos de pés». Só simpatizamos com o laureado que dê de ombros: «Então... a bola bateu-me e entrou... foi mais sorte que outra coisa...».
Portugal deve ser o único país do mundo em que o pragmatismo precisa de defesa e de explicação. Por isso é que no mundo da bola nenhum português gosta de italianos. O Manchester e o Ajax até terão clubes de fãs em Portugal, mas por cá ninguém deseja nada de bom ao Milan ou à Juventus. Quando os ‘bianconeri’ de Capello vieram ganhar à Luz, «até se compreendeu». Mas quando a Udinese passou uma hora e meia a defender em Alvalade e mesmo assim ganhou, mais valia que tivessem cuspido para o público — era menor desfeita. Não foi pelo resultado. Foi pelo que ele simbolizava: aquele 0-1 era a derrota da forma portuguesa de estar no mundo. «As nossas jogadas são autênticas obras de arte», dizia um adepto na rádio: «Agora é preciso ir ganhar a Udine», dizia outro, «ganhámos em Alkmaar e também podemos ganhar em Itália». Como diria o poeta, «Só posso aceitar o sonho / Respirar na fantasia».
Só por milagre o Sporting vencerá em Udine. Não é que os milagres não aconteçam, principalmente no futebol — o que é mau é entrar em campo à espera deles. O Sporting não depende apenas de si próprio. No final desses 90 minutos o marcador do estádio apontará, impassível, o caminho do Sporting para a Taça UEFA. Para os pragmáticos a quem sucedeu viver em Portugal, essa visão será como uma garrafa de oxigénio, a única forma de respirar um pouco de realidade no meio da ilusão e do fatalismo que inundarão as hostes de verde-e-branco. A eliminação do Sporting é a vitória de uma concepção do mundo em que os sucessos e os insucessos, as vitórias e as derrotas, as conquistas e as tragédias, não estão escritas antecipadamente — nascem da conduta de cada um. E esta concepção é válida. Mesmo que explicada em italiano.
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