terça-feira, outubro 18, 2005

Por uma verdadeira cultura física

Agora que me juntei a uma equipa do Inatel e, duas vezes por semana, compareço no nosso pelado para levar as ‘cargas’ do mister, dei por mim a reflectir um pouco sobre a aversão que eu e alguns dos meus colegas apresentamos em relação à parte física do treino.

Lembrei-me de, um dia, estar no estádio a assistir a um treino de uma equipa da antiga I Divisão. Também estava lá uma turma da FMH, cujos alunos iam estudar o treino daquele dia, mostrando grande ansiedade para que começasse a função. Depois foi giro ver as reacções deles e delas: quando o treinador e a equipa chegaram ao relvado, grande alvoroço; quando começou o aquecimento, distracção total; quando se passou aos exercícios físicos, sonolência generalizada. Mas quando começam os exercícios com bola (coisas simplicíssimas, que só envolviam trocas de bola, primeiro com um pé, depois com o outro)... atenção focadíssima, com os mais discretos pormenores esquadrinhados e anotados nos cadernos.

Ainda hoje, noto que, antes dos jogos entre amigos, é raríssimo as pessoas fazerem um aquecimento (pelo menos um aquecimento digno desse nome, que não se resuma a uns risíveis alongamentos), e que mesmo os que aquecem são objecto da chacota dos outros: «Ouve lá, mas tu pensas que vais jogar alguma taça, ou quê?!».

Esta alergia ao suor é um dado cultural. O português médio, via de regra, associa a educação física a coisas negativas e desagradáveis. Portugal deve ser o único país do mundo em que os treinadores das camadas jovens, quando os rapazes fazem um mau jogo no fim-de-semana, se sentem na liberdade de lhes dar um treino exclusivamente físico no dia seguinte — para depois se espantarem imenso de os miúdos ficarem a associar a preparação física e atlética a um sacrifício, um risco, um sofrimento.

Isso depois passa para os media. Em todo o mundo, só os jornais portugueses utilizam termos ligados à violência — «a equipa levou um tareão» ou «os treinos de fulano de tal eram uma verdadeira surra» — para descrever os aprontos exclusivamente físicos. É como se o futebol português, em si mesmo, fosse tão refinado e puro que a própria ideia de ter de tratar do físico fosse um sacrilégio. Como quem mandasse o Leonardo da Vinci ter aulas de desenho ou o Eric Clapton aulas de guitarra clássica.

A coisa chega tão longe que, na nossa televisão, alguns jornalistas, quando vêem um jogador a fazer exercícios de aquecimento, se permitem dizer coisas como «já está a aquecer há muito tempo... já deve estar a ferver» ou «hoje não é preciso aquecer muito, que já está um calor dos diabos». Nem percebem que a expressão ‘aquecimento’ é apenas uma imagem, tem muito pouco a ver com a temperatura do corpo... tem a ver com os níveis de resistência, elasticidade, força dos músculos e tendões dos jogadores... e que por isso o aquecimento de um futebolista é diferente do de um pugilista ou de um acrobata.

Mesmo no futebol mais a sério, o treino físico não passa como um investimento na disponibilidade atlética e física para aguentar o jogo — é, isso sim, um risco (de mialgias, de lumbalgias, de cefaleias, de desmotivação, de desconcentração...), uma maçada ou um castigo.

Não é que eu seja exemplo para ninguém (basta ver as minhas fotos no blog para topar que não tenho um corpo Danone...). Mas aqueço antes dos jogos e encorajo os meus colegas a fazer o mesmo. Vou muitas vezes a pé para o trabalho. E um dia que tenha filhos hei-de passar-lhes esta visão. Alugámos o campo só por uma hora e não dá tempo para aquecimentos? Então chegamos uns minutos mais cedo e aquecemos cá fora. O que se aluga é o campo, não o balneário, por isso não custa nada vir mais cedo e preparar o corpinho para a carga que lá vem!

Quem trata do físico (principalmente quem o faz de forma abrangente, em coisas que vão da alimentação ao aquecimento antes dos jogos, passando pelo não fumar e pelo exercício físico regular) joga futebol de forma muito mais agradável e motivante, e entra num ciclo virtuoso, em que quanto mais se gosta mais se faz.

Lembro-me bem de, na minha infância, estar numa animada discussão com os meus pais porque, chegando da escola, lhes pedi que também me arranjassem «um atestado médico para não ter de fazer Educação Física, como os meus colegas».

Mais valia ter pedido ao meu pai que me deixasse casar com um homem! Quando saiu do acesso de raiva, o meu pai explicou-me, com a calma possível, que a cultura física é fundamental, seja nos futebolistas profissionais seja no simples cidadão, e que se os meus colegas não podiam ir às aulas de Educação Física, eu tinha que ter compaixão por eles, por estarem doentes. Na minha inocência (naquela altura saíam-me da boca umas coisas muito tolas!) tentei explicar ao meu pai que os meus colegas não estavam doentes — tinham era arranjado um atestado para ficarem dispensados das aulas. E quem não conseguisse esse atestado (ou seja, eu e mais quatro ‘tansos’ que fazíamos as aulas de voleibol) era gozado por eles!

Esta minha pretensa pedagogia teve o dom de deixar o mau pai apopléctico. Foi nesse dia que vi que afinal o nosso estado de espírito pode mesmo impedir-nos de conseguir respirar — tal como a má preparação física.

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